"A figura geométrica conhecida como Vesica Piscis é materializada na ânfora que está, pela primeira vez, em exibição num espaço de arte. Essa peça central, que conecta todas as demais, nos mostra dois círculos de igual tamanho que se interseccionam. Trata-se de um potente símbolo, parte da geometria sagrada de muitas antigas civilizações. A Vesica Piscis nos remete a Teoria matemática dos conjuntos ao indicar a possibilidade de algo pertencer simultaneamente a dois grupos distintos. Ou seja, cria uma zona comum afirmando que algo não precisa ser ou A ou B, mas pode ser A e B ao mesmo tempo. Um desenho cheio de implicações, que vai além do binarismo expresso linguísticamente pela conjunção ou a favor de uma simultaneidade expressa pela conjunção e.
Desde quando a lógica binária de gênero passou a ser naturalizada socialmente? Desde quando ela se tornou a única validada pelos governos, pelas instituições, pela própria escrita da História? É nesse sentido que Vesica Piscis pode ser compreendida como um elo perdido agora reencontrado ou reapresentado. Não apenas por exibir a conexão entre dois círculos - materialização da própria definição de elo - mas por nos reconectar a um passado onde talvez as categorias pudessem se relacionar de outras maneiras. Um passado fabulado pela exposição, cuja existência concreta jamais será atestada, mas que, no entanto, os objetos aqui reunidos reivindicam, à sua maneira, reconhecimento."
Texto curatorial da exposição Vesica Piscis: O Elo Perdido
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— Thais Rivitti
Curadora e gestora do Ateliê397
"Foi a partir da sua descoberta enquanto pessoa não-binária que Thiá Sguoti se emancipou dos paradigmas da sociedade. Sua pesquisa olha para o corpo e suas identidades de forma lúdica, criando fantasias que mesclam corpos reais e corpos imaginários, convidando ao conhecimento sensitivo. O seu fazer artístico surge das camadas que influenciam o modo de viver, os comportamentos, as ações, as vestimentas e as interrelações corporais."
Texto para a Superbacana+

— Vivian Villanova
Criadora do Vivieuvi e idealizadora de projetos que pensam a arte
"A partir de uma longa pesquisa sobre o imaginário da sereia e suas representações em várias culturas, usando tanto materiais orgânicos quanto resina, Thiá Sguoti aborda as questões de gênero, sexualidade e mito. A artista se aprofunda nessa figura feminina e ambígua, cujas representações são encontradas basicamente no imaginário popular dialogando com a sexualidade feminina."
Texto para a exposição Sustentar o Efêmero.
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— Tania Rivitti
Gestora do Ateliê397
"Thiá Sguoti (São Paulo, 1995) é uma artista trans, licenciada em Artes Visuais e sua pesquisa gira em torno da figura mítica da sereia, que a interessa desde a sua infância. Cada pessoa é um mundo, já escreveu Clarice Lispector, e adentrar no mundo de Thiá se torna cada vez mais instigante e complexo, com os desdobramentos e repetições de nossos encontros. A artista me conta sobre a sua pesquisa, que vai além das mitologias clássicas, e das leituras mais populares que mencionam sereias, como o famoso "A água e os sonhos" de Gaston Bachelard. Ela se aprofunda. De maneira a saber diferenciar teorias, origens e culturas que conectam-se à essa mitologia ancestral.
Para a artista é importante ultrapassar as referências do Renascimento, e as castrações da igreja católica perante a figura da sereia, que passou a ser representada com as genitais cobertas. E a sua cauda, que antes dividia-se em duas pernas escamosas, se unifica desde a cintura até os pés. A artista, Thiá Sguoti, se interessa por uma narrativa mais disruptiva sobre o tema, e relembra a produção do surrealista René Magritte que retratou a figura do "peixe ao inverso", ou seja, com a cabeça de peixe mas com as pernas e genitais novamente à mostra. A artista deseja, afinal, conectar-se aos avanços mais progressistas sobre corporeidades e suas performances sociais. Desvendando e fabulando hipóteses ao redor da figura da sereia que já refletiram questões espirituais e sociais de determinadas épocas e que atualmente, sob a óptica queer da artista, seguem acontecendo na contemporaneidade.
Como em um jogo de memória, o seu ateliê abriga um altar repleto de pequenas estátuas de sereias, de diferentes nacionalidades e religiões. Uma das esculturas é escolhida para preencher a primeira esquina do espaço expositivo, do viveiro, com cor branca e visualmente discreta, chega a camuflar-se com a cor das paredes. A diversidade de religiosidades manifesta-se nas obras "Oṣun", e "Yemọja", cujo título é escrito em idioma Iorubá, e suas cores metalizadas, como as escamas, ganham as cores: dourado e prata, emulando as referências das entidades religiosas de matriz africana, expograficamente dispostas, uma em seguida da outra, como irmãs.
E no outro canto, do lado direito no chão, está a obra "Estudo fossilizado de uma sereia", que nada mais é do que o molde que dá origem às barbatanas, estas, que também encontram-se exibidas em Vivarium, e dão o visual de observatório de sereias. Thiá manifesta o seu grande interesse pela moda e sua habilidade adquirida com o jogo do molde e contramolde, realiza moldes de seu próprio corpo que dá origem às impactantes caudas de sereia. Como vemos, na obra "Terra sem Mar" da série Farsa-Fantasia, que encontra-se visualmente em destaque nesta exposição, e pendurada do teto ao chão.
Sua mais recente produção vem da elaboração em cerâmica, que resulta na obra "Portal", uma emblemática instalação que inclui o formato de uma vesica - forma baseada na geometria sagrada, que simboliza o encontro de dois círculos - que ganha o tom metalizado e prata sobreposto por uma cabeça de peixe, que parece atravessar a fisicalidade da parede, e literalmente atravessar um portal. Quase como conectando-se através de um arco temporal, entre passado e presente."
Texto sobre a exposição Vivarium.

— Núria Vieira
Curadora e pesquisadora
"Este conjunto de fotografias discute questões de gênero e conceitos de beleza. Imageticamente, a artista posa como uma sereia, figura mitológica presente em diversas lendas. Ela personifica o mar e os seus perigos, já que, por meio de sua beleza e canto, atraia os navegantes para abraçá-los e matá-los por afogamento. Psicanaliticamente, é realizada a alusão de ela ser uma "devoradora" de homens, pois, frígida da cintura para baixo, não conseguiria atender aos seus impulsos sexuais.
A postura escultórica clássica do corpo desejado, seja com barba, com cabelos sensuais, com maquiagem ou com cauda de sereia, aponta para distintas possibilidades de beleza, desejo e prazer sob perspectivas que fogem a estereótipos e discutem a diversidade como algo a ser vivenciado."
Texto sobre a obra Transições.

— Oscar D'Ambrosio
Curador e crítico de Arte
"A estética como modo pelo qual captamos o mundo ao redor através da “aesthésis” resulta num impacto, uma sorte de registro desse mundo exterior que adentra nossa interioridade. Para Aristóteles, a aesthésis exterior do mundo somente é possível de impactar-nos, pois, somos dotados de potências internas, ou “dynamis”, resultante de nossas faculdades sensoriais como o enxergar, o ouvir, o tato, o paladar, etc. Portanto, os afetos, ou seja, aquilo que nos afeta, que nos impacta direccionalmente de “fora” para “dentro” é transmitido pela estética externa para ser captado por nossas potências internas e transformadas em conhecimento, “gnosis”, que se diferencia do conhecimento empírico, “epistéme”, mesmo que não menos importante.
O trabalho de Thiá Sguoti é um convite ao conhecimento sensitivo, ou sensorial, o conhecimento, por assim dizer, gnóstico dos sentidos. A estética de Sguoti impacta, afeta os sentidos através da mais anciã das formas afetivas que incitam nossas potências: a sexualidade, ou sexo. Quando, por exemplo, as rosas de uma roseira “atraem” abelhas para disseminar o pólen e fecundar novas plantas, assim o fazem utilizando as rosas como órgãos sexuais da roseira. Por isso que, quando presenteamos rosas, ou outras flores a alguém, estamos presenteando-as com os órgãos sexuais de uma planta. Ora, ninguém menos do que Charles Darwin escreveu extenso tratado de como o sexo, e os órgãos reprodutivos de um ente vivente, tornam-se os maiores mecanismos de sobrevivência de uma espécie. Por isso, esteticamente, ou afetuosamente impactante, é o sexo, a genitália, que desperta o interesse e assim a reprodução daquilo produzido, a “poésis”.
Ao inverter o corpo da sereia, colocando-lhe uma cabeça de peixe e um corpo humano com a genitália exposta, Sguoti retoma precisamente esta tradição da estética como afeto de despertar o interesse de forma ancestral. Se, por um lado, o eurocentrismo da tradição moderna condena o corpo, em especial, o feminino, associando-o ao pecado, por outro lado, as tradições antigas colocavam o corpo num patamar mais expressivo, num patamar de “summa” importância exatamente por garantir o afeto do interesse pela preservação e reprodução da Vida."

— Gabriel Frossard Barbosa
Escritor e Mestre em Políticas Públicas